E se a mulher negra tivesse seu poder de voz?

“Continuava levando nas minhas costas
minha pesada carga
E como pesava!…
Passei pó na cara,
e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra
Negra!Negra! Negra! Negra!”

(Gritaram-me negra – Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra)

No dia 25 de julho são comemoradas duas datas importantes para as mulheres negras. No cenário internacional é comemorado o Dia da Mulher Negra Latina Americana e Caribenha e, nacionalmente, o Dia de Tereza de Benguela. São comemorações que representam a luta secular de mulheres que, em sua grande maioria, não são notadas, mas muito violentadas.

Como organização latinoamericana, o TETO reconhece os estigmas que recaem nas mulheres negras e atua buscando seu protagonismo, semanalmente, dentro das favelas mais precárias do nosso país.

Atualmente no Brasil, 54% da população é composta por pessoas negras (sendo consideradas as pessoas que se dizem pretas e pardas, conforme dados do IBGE). De acordo com dados de 2016 computados pelo TETO, por meio de aplicação de enquetes socioeconômicas em nove comunidades de São Paulo, 70% das mulheres que lá residem são negras. Contudo, as mulheres negras são massacradas por ações que foram herdadas do período escravocrata.

Durante a escravidão, as mulheres negras foram retiradas de seus lares para serem produtos rentáveis aos seus donos. Essas mulheres perderam direitos que seriam inerentes a qualquer ser humano. Deixaram de serem vistas como mulheres e passaram a ser tratadas como animais, objetos de satisfação sexual de seus senhores e responsáveis pelo aumento do número de crianças negras que deveriam nascer nas senzalas. Ter uma família era uma forma de fortalecimento e resistência. Dessa maneira, as escravas passaram a amar o homem negro e se dedicar a enfrentar as mazelas da escravidão junto com eles. Elas foram obrigadas a serem fortes e pouco foram mencionadas nas histórias, surgindo assim a necessidade de homenagear Tereza de Benguela no dia 25 de julho, tornando Tereza um ícone representativo dessas mulheres negras escravas tão importantes para a liberdade negra, assim como é Zumbi dos Palmares.

Tereza de Benguela é conhecida como “Rainha Tereza”. Viveu no Vale do Guaporé, no Mato Grosso, e após a morte de seu companheiro, José Piolho, liderou o Quilombo de Quariterê. Conhecida por sua força e liderança, resistiu bravamente à escravidão por mais de 20 anos. Comandou diversas resistências contra a Coroa Portuguesa, mas faleceu quando o quilombo foi invadido pelas forças do governador da capitania.

“Ser negra nos dias de hoje, independente do recorte de classe, é ter seus traços característicos sendo tratados como fantasia e abominação já que ‘o seu cabelo não nega mulata”

Passando para o momento atual, encontramos uma mulher negra silenciada e fadada à solidão em razão de toda estruturação do racismo que persiste na sociedade. Ser negra nos dias de hoje, independente do recorte de classe, é ter seus traços característicos sendo tratados como fantasia e abominação já que “o seu cabelo não nega mulata”. A mulher negra já nasce com a determinação de ser dona de um cabelo duro, mas dona de um corpo digno de uma musa nua no carnaval.

Ser negra também é receber o menor salário, se comparado ao do homem negro, mulher branca e homem branco. Um estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) levantou que 10% da população brasileira compromete mais de 32% de sua renda com impostos. O mais alarmante é que dentro desses 10%, 68,09% são negros, onde 45% são homens e 54% mulheres. Invertendo essa análise, dentro dos 10% mais ricos da população, há 83,72% de brancos e 16,28% de negros.

Sendo a base da pirâmide social (na qual o homem branco encontra-se no topo), 74% das mulheres negras no país encontram-se em uma situação de vulnerabilidade e marginalidade, conforme dados do IPEA.  Desta forma, as mulheres negras residem em massa nas periferias e favelas, recaindo sobre elas as altas cargas tributárias e empregos que garantem o mínimo de sustento de sua família, não encontrando alternativas a não ser morar em ocupações precárias e informais.

A maioria das mulheres negras que moravam em favelas brasileiras em 2016 nos estados da Bahia, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo tinham como profissão diarista, vendedora, doméstica, cozinheira, faxineira e manicure. Destaca-se nesses dados recolhidos pelo TETO não a atividade profissional dessas mulheres, mas sim o estereótipo que é criado pela sociedade do lugar que essas mulheres devem ocupar no cenário profissional e, principalmente,  quão normalizado isso é.

Nas favelas do Rio de Janeiro em que o TETO atua, 79% das mulheres responsáveis em prover sozinhas o próprio lar são negras

Outro aspecto que diz respeito às mulheres negras é o celibato definitivo ou solidão da mulher negra. Um estudo realizado pela socióloga Ana Cláudia Lemos Pacheco em sua tese de doutorado deu origem ao livro Mulher Negra: afetividade e solidão. Muitos outros artigos e pesquisas foram criados com base neste tema tão delicado e doloroso. As mulheres negras têm sofrido por anos as mazelas de um machismo que as trata somente como um corpo a ser utilizado como satisfação sexual. São abandonadas por seus parceiros e obrigadas a batalhar sozinhas pelo sustento de suas famílias. Nas favelas do Rio de Janeiro em que o TETO atua, 79% das mulheres responsáveis em prover sozinhas o próprio lar são negras, o que confirma bastante a necessidade do referido estudo e a importância da abordagem do tema.

Ainda diante de toda a crueldade que sofre em razão do racismo, existe o preterimento da mulher negra em razão do tom de sua pele. Quanto mais próxima de tonalidades claras, mais aceita essa mulher é pela sociedade, sendo objetificada pelo seu corpo e “pele da cor do pecado” que tem. Entretanto, quanto mais escura for a pele, mais rejeitada essa mulher é, sendo tachada de dona de uma pele suja, fedida e animalesca. Esta diferenciação em detrimento da cor da pele chama-se colorismo.

Mesmo diante de toda rejeição, as mulheres negras resistem, encontram forças a cada dia, aprendem sozinhas a se amar e enfrentam todo o racismo estrutural, comprovando a importância de suas lutas serem valorizadas e enaltecidas não só neste 25 de julho, mas todos os dias.

Consciente dessa vivência e por serem as mulheres negras maioria nas comunidades em que atua, o TETO presta sua homenagem e solidariedade a todas essas mulheres que merecem deixar de serem protagonistas de suas histórias para se tornarem protagonistas de toda uma nação.

* Artigo de Beatriz Carmo, gestora territorial do TETO Brasil 

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